Gilberto Freyre lê Manuel Bandeira em cena de "O mestre de Apipucos" - Foto: Reprodução/Youtube

A ditadura da informalidade

Pensamento que põe tudo o que é marginal no centro da cultura brasileira não parou até hoje e está na origem do esquecimento de importantes artistas
03.05.24

Joaquim Pedro de Andrade, quando era um jovem cineasta, no final dos anos 1950, fez um documentário sobre Manuel Bandeira e Gilberto Freyre financiado pelo Instituto Nacional do Livro. O filme, chamado inicialmente de O Mestre de Apipucos e O Poeta do Castelo (1959), mostrava os dois personagens em seus respectivos lares, com narração em off. Porém, enquanto Manuel Bandeira morava num apartamento simples no centro do Rio de Janeiro, Gilberto Freyre habitava uma grande casa histórica no bairro de Apipucos, no Recife. E enquanto Bandeira recitava um poema, Freyre falava da sua rotina e de sua casa. Na primeira exibição do filme o contraste ficou muito evidente, Freyre foi visto como um esnobe.

À época, Gilberto Freyre escreveu um artigo comentando o curta e rebatendo as críticas que recebeu. A solução de Joaquim Pedro de Andrade foi separar o filme em dois – mas a polêmica estava instaurada. E aparentemente deixou mágoas, uma vez que Gilberto Freyre (ou sua família) não incluiu o filme no resumo biográfico publicado nos livros de sua autoria. O que aliás precisa ser corrigido, esses dois filmes são duas preciosidades, tanto pela relevância central dos personagens na cultura brasileira como pelo refinamento da linguagem cinematográfica.

Luciana Corrêa de Araújo escreveu no livro Joaquim Pedro de Andrade: Primeiros Tempos que o contraste entre os personagens é uma “evidente contraposição entre os dois escritores, na qual cabem a Bandeira os valores positivos”. E mais: “Seu despojamento [do poeta] ganha valoração muitos pontos acima da exuberância de Freyre, vista sob a ótica da vaidade e do elitismo”. Só que a interpretação da pesquisadora não encontra confirmação em nenhum comentário de Joaquim Pedro. Na verdade, ele trata Freyre – que era amigo pessoal do seu pai, o criador do Iphan, Rodrigo Melo Franco de Andrade – com grande reverência, chamando-o de “mestre”. E no final da vida escreveu um roteiro baseado em Casa Grande & Senzala, com autorização do mestre, e o filme não foi realizado apenas porque ele adoeceu e veio a falecer.

Ora, mas qual o incômodo relacionado à formalidade da vida de Gilberto Freyre representada no curta? Uma vida despojada pode ser tão poética quanto uma vida num ambiente refinado – os filmes de Luchino Visconti são testemunhas disso. E a casa de Gilberto Freyre virou um museu, é visitada até hoje e tornou-se um lugar preciosíssimo para entender o Brasil e o pensamento do seu antigo morador.

Seis anos depois de fazer o curta, Joaquim Pedro de Andrade declarou que se pudesse refazer naquele momento o filme sobre Manuel Bandeira, o faria diferente.
“Não lhe pediria, como fiz antes, para que representasse o seu personagem diante da câmera como se ela não existisse”, escreveu. Ora, o que faz a beleza do filme é exatamente ser um documentário bem decupado, com cada plano pensado como se fosse um filme de ficção.

Tal comentário é resultado de uma ideia, infelizmente hegemônica na cultura brasileira, daquilo que o Alexandre Soares Silva chamou de ditadura da informalidade, cuja origem está, segundo ele, na Semana de Arte Moderna de 1922.

Com efeito, ali é o ponto inicial desse movimento de crítica ao academicismo, que busca colocar tudo o que é marginal no centro da cultura brasileira. Podemos dizer que esse movimento não parou até hoje.

Ele está na origem do esquecimento de importantes artistas brasileiros, como o cineasta Alberto Cavalcanti. Cavalcanti foi o primeiro cineasta brasileiro a ter uma carreira internacional, realizou filmes na França e na Inglaterra, trabalhou com Jean Renoir e Charles Chaplin, foi premiado em Cannes, mas… sua obra foi considerada formalista pelos diretores do Cinema Novo. E ele foi solenemente desprezado. Esquecido mesmo.

Algo semelhante aconteceu com o escritor José Geraldo Vieira. Nos anos 1950, Vieira publicou um bestseller, vendendo 40 mil cópias do livro A Ladeira da Memória – um verdadeiro clássico da literatura brasileira, que combina a memorialística de Proust e o fluxo da consciência de Joyce. Otto Maria Carpeaux escreveu o seguinte sobre ele: “Não pode ser comparado a nenhum outro romance brasileiro, nem a Machado nem a Graciliano que admiro tanto. É outra espécie. E acho que a renovação futura da arte do romance no Brasil partirá do seu livro – ou então não se renovará nada”. Infelizmente, parece ter sido escolhida a segunda opção. José Geraldo Vieira foi criticado por sua obra ser considerada formalista. Seus livros ficaram décadas sem serem reeditados, mas felizmente tem sido redescobertos: estão sendo relançadas pela editora Sétimo Selo, no Brasil, e foram traduzidos e estão sendo lançados nos Estados Unidos. Mas a ditadura da informalidade permanece.

 

Josias Teófilo é jornalista, escritor e cineasta.

 

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  1. Li José Geraldo Vieira. Ladeira da Memória é uma preciosidade, encaixando elegantemente épocas e personagens na trama, mas gostei mesmo foi de A Mulher que Fugiu de Sodoma. É fenomenal, bem construído e envolvente. Parabéns por ajudar a divulgar um romancista que, veja só a que ponto chegamos, sabe realmente escrever.

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