Abbad Diraneyya via Wikimedia Commonso que dizer de tantos jovens branquelos usando keffiyeh – isso não conta como apropriação cultural? 

A intifada universitária não salva crianças em Gaza

Os jovens que fazem cosplay de revolucionário só conseguem chamar atenção para os dramas que eles próprios encenam no campus
03.05.24

O linguista John McWhorter não pôde executar 4’33” em uma aula de música que leciona na Universidade de Columbia, em Nova York. Essa famosa peça do compositor americano John Cage consiste em quatro minutos e trinta e três segundos de completo silêncio. A ideia é despertar, no espectador, a consciência dos sons do ambiente. Em uma classe em que havia estudantes israelenses e judeus americanos, McWhorter julgou que seria inapropriado pedir que eles prestassem atenção aos sons de Columbia, que naquele dia incluíam slogans e cânticos contra a existência do estado de Israel. A palavra de ordem de vários protestos é “from the river to the sea”, vale dizer, todo o território que vai do rio Jordão ao mar Mediterrâneo deve ser palestino. A chamada “solução de dois estados” não parece satisfatória para os manifestantes.   

Professor de Direito em Harvard, Stephen E. Sachs visitou o acampamento montado na universidade por alunos que protestam contra a guerra em Gaza. Encontrou um cartaz em árabe que trazia uma versão modificada do bordão anti-Israel – “da água à água, a Palestina é árabe” – e uma citação de Leila Khaled, terrorista palestina que sequestrou um avião nos anos 1970. O que ele não encontrou: qualquer menção aos israelenses sequestrados pelo Hamas. Sachs concede que alguns dos acampados talvez entendam que a luta pela autodeterminação dos palestinos não deve se confundir com a defesa do terrorismo. Mas ele observa que o movimento, como um todo, não se preocupou em traçar essa distinção. 

McWhorter relatou suas impressões sobre a Columbia palestina em um artigo publicado pelo The New York Times (e mais tarde traduzido no Brasil pelo Estadão) em 23 de abril. Sachs falou de sua visita ao acampamento em Harvard no X (ou Twitter, para os nostálgicos) três dias depois. Na última terça-feira, 30 de abril, vi uma reportagem da BBC sobre os protestos em Columbia. Entrevistaram uma professora que defendeu o caráter pedagógico do acampamento: os alunos estavam se engajando com o mundo, pedindo mudanças, e isso também faz parte da educação, dizia ela (parece que Greta Thunberg fez escola – contra a escola: até professores acreditam na importância de faltar às aulas). No mesmo dia, um grupo de manifestantes invadiu o Hamilton Hall, um prédio da universidade, que na quarta-feira foi desocupado pela polícia – cem ocupantes foram presos. Na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), a violência eclodiu quando um grupo pró-Israel atacou o acampamento pró-palestino. Consta que a polícia demorou a intervir, permitindo que os dois campos trocassem pedradas e pauladas por algumas horas, em uma patética paródia do conflito em Gaza.    

Apoiadores dos protestos universitários não podem mais elogiar a natureza pacífica do movimento. O artigo de McWhorter, aliás, já colocava o tal pacifismo em dúvida: um movimento cuja constante barulheira interrompe as atividades regulares do campus e que exibe cartazes “retratando os membros do Hamas como heróis” não pode ser considerado pacífico, diz o autor.  

McWhorter revela que conhece alguns dos estudantes do movimento e não acredita que eles sejam movidos por ódio antissemita. A bronca da turma seria antes contra entidades abstratas que frequentam o discurso acadêmico: “estruturas de poder” e “branquitude”. Se entendo corretamente o que McWhorter quer dizer, os universitários pró-palestinos não cultivam uma aversão explícita aos judeus – apoiadores dos protestos lembram sempre que há judeus nos acampamentos –, mas abraçam a uma compreensão equivocada do sionismo como variante do supremacismo branco. Mais distinções difíceis de traçar quando se está clamando por uma nova intifada da janela de um prédio invadido: nem todo judeu é branco, e nem todo sionista segue a linha agressivamente sectária de Netanyahu.  

De minha parte, acho curioso que uma geração tão cheia de melindres linguísticos e pruridos simbólicos não tenha pudor em demonstrar uma hostilidade tão aberta a um grupo historicamente perseguido. E o que dizer de tantos jovens branquelos usando keffiyeh – isso não conta como apropriação cultural? 

Antes da desocupação à força do Hamilton Hall, uma estudante branca com o keffiyeh em torno do pescoço concedeu entrevista dizendo que a administração da universidade não poderia impedir que se levassem alimentos e água para os militantes dentro do prédio. Tratava-se, segundo ela, de uma “questão humanitária”. Em que bolha essa moça vive para achar que passar uns dias sem tofu orgânico dentro de um prédio do qual se pode sair a qualquer momento é um drama humanitário?  

Isso é um deboche com os habitantes de Gaza que efetivamente têm sofrido com falta de água, comida e atendimento médico. E para quê? Tudo o que a turma que brinca de intifada conseguiu foi desviar a discussão pública americana, na imprensa e nas redes, da guerra em Gaza. O debate é sobre temas circunscritos ao campus – por exemplo, se há antissemitismo em Harvard e Columbia, ou se a polícia cometeu abuso quando retirou os acampados da Universidade Emory, em Atlanta.  

Vi o clipe dessa moça tão preocupada com suas próprias demandas humanitárias no X do ativista palestino Ahmed Fouad Alkhatib. Filho de palestinos, nascido na Arábia, criado em Gaza e hoje radicado nos Estados Unidos, Alkhatib é uma voz inteligente e moderada na conversa sobre o conflito que importa – aquele em Gaza, não em Columbia. Ele acusa os possíveis crimes de guerra cometidos pelas forças armadas israelenses sem perder de vista que o Hamas é o responsável primeiro pelo conflito. Aos jovens americanos que fazem “cosplay de revolucionário” (expressão dele), seu recado é claro: “Parem de desperdiçar tempo envergonhando o movimento pró-Palestina”. 

 

Jerônimo Teixeira é jornalista e escritor

 

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