Anthony Crider via Wikimedia CommonsManifestantes em Charlottesville, nos EIUA, em 2017: segundo a conversa dos especialistas, a direita só existe na forma radical, doidivanas, extrema

O mundo assombrado pelos especialistas

Ora, por estes dias fiquei sabendo que nessa categoria tão variada de diletantes e profissionais (os especialistas misturam as duas coisas), já existem os especialistas em extrema-direita
03.05.24

A esta altura dos acontecimentos, o amigo já percebeu que vivemos num mundo repleto de especialistas. De certo modo, isto é natural: há assuntos demais, conhecimento demais no mundo, e ninguém mais consegue dar conta de saber tudo, de ter as noções mínimas de tudo, de dominar o beabá das coisas. A gente precisa de ajuda. Daí começaram a pipocar os especialistas, sujeitos que dedicam a vida a saber tudo o que houver para saber a respeito de alguma coisa. E, como há coisas de montão, há especialistas de montão: pode-se quase dizer que dão em árvore (e, se derem, haverá um especialista em especialistas que dão em árvore) ou que formam montinhos nas calçadas (e, nesse caso, haverá um especialista na formação de montinhos de especialistas nas calçadas), ou que são vendidos nas feiras às dúzias em bacias (e, portanto, teremos especialistas em especialistas de baciada). E os há em tudo: especialistas em segurança pública, especialistas em telenovela, especialistas em economia, em direito, em modalidades médicas e esportivas, em horóscopo, em escolas de samba, em trajes de praia, em chuva e em seca, e por aí vai. E até em coisas inusitadas: já vi menções, nos assim chamados “portais de notícias”, a especialistas em abuso de leitura, em moderação no consumo de álcool e até em prisão de banhistas.  

Ora, por estes dias fiquei sabendo que nessa categoria tão variada de diletantes e profissionais (os especialistas misturam as duas coisas) já existem os especialistas em extrema-direita. Ou seja: pessoas que estudam a extrema-direita, que analisam a extrema-direita, que sabem tudo o que há para saber sobre a extrema-direita e são capazes de explicar ao leigo – à dona de casa, ao profissional liberal, ao estudante médio, ao analista de crédito, à manicure – quem é, onde e como vive, o que pensa, de que se alimenta a extrema-direita. E, claro, como se proteger da extrema-direita se a gente se encontrar com ela na rua, na chuva, na fazenda, no deserto, no Polo Sul. 

É curioso que não existam especialistas na direita pura e simples, na direita não extrema, na direita moderada. Decerto é porque, ao que parece, não existe “direita pura e simples, direita não extrema, direita moderada”: segundo a conversa dos especialistas, a direita só existe na forma radical, doidivanas, extrema. Ou até, como já andam dizendo, ultra. Em resumo: se é de direita, é extremo, tá babando. Aquilo que uns e outros querem chamar de direita moderada, de direita que não baba, é, na verdade, liberalismo. Ou neoliberalismo.  

É verdade que, até alguns anos atrás, os especialistas diziam que o neoliberalismo era a extrema-direita: que o neoliberalismo era nazista, que era genocida, que havia uma “privataria” do neoliberalismo, e cuidado que o neoliberalismo quer te matar. Isso passou. Até porque certos demônios do velho neoliberalismo agora estão restaurados, ou elevados, pelo novo governo velho ao status de anjos. Daí que hoje os especialistas diferenciem muito cuidadosamente os antigos neoliberais dos modernos direitistas tão extremados: o neoliberal hoje te ama, ao passo que o direitista está disfarçando, escondendo a baba, só esperando você se distrair para pegar um lança-chamas e te queimar vivo.  

Obviamente, um especialista em extrema-direita é um sujeito muito corajoso. É mais perigoso estudar a extrema-direita do que estudar os tigres, os tubarões, os ursos cinzentos recém-despertos da hibernação, as crateras dos vulcões em erupção, os grandes abismos oceânicos. Eles vivem assustados, esses especialistas, eles vivem apreensivos com o que veem e ouvem. Muitos deles saem da presença de seus objetos de estudo (as pessoas de extrema-direita: taxistas, barbeiros, senhorinhas que se alternam entre os grupos de zap-zap e a feitura de bolos de fubá, crentes, barbudinhos de gravata-borboleta e camisa xadrez, velhotes de muletas e camisa da seleção) psicologicamente sequelados e precisando de pensão do governo ou aposentadoria precoce. Reconheçamos sua bravura. 

O interessante é que, se você dormir no barulho desses especialistas, acaba acreditando que a única normalidade de pensamento que existe é o da esquerda, ou, vá, o da centro-esquerda (que é sempre muito mais esquerda do que centro), e que todo o mundo que não feche com esse hemisfério ideológico já virou assunto para antropólogos, para aqueles que se interessam pelo estudo das organizações sociais tribais e pelas pinturas rupestres. Aliás, a única coisa que impede esses especialistas de exigir a criação de uma reserva ou fundação para proteger os direitistas é que, pôxa, eles são de extrema-direita, e aí não dá, né? 

 

Orlando Tosetto Júnior é escritor

 

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  1. Adoro seus textos, Tosetto. Você é o último dos animadores aqui da Crusoé. Não nos deixe! São minutos de descontração. E viva os especialistas. Kkkkkkk

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